terça-feira, 26 de junho de 2007

Uma história sobre a chuva

Ainda no meio da noite a casa ficou cheia, amigos, vizinhos, parentes vieram de todos os lados. Todos os tios, todas as tias, alguns rostos comuns e nomes ainda desconhecidos para uma criança de seis anos de idade.

“Oba, festa!” Adultos prá lá e prá cá, crianças correndo brincando, e no meio de tudo isso: Flavinho, franjinha reta caída nos olhos, uma cabeça grande e uma mente maior ainda, que fervilhava pensamentos aos montes.

No mundo do pequeno Flavinho, a alegria era constante, especialmente nesse dia, em que todos os primos, todos os amigos estavam ali, e, prá temperar tudo isso, de quando em vez, abraços fortes, repletos de amor e carinho distribuídos por sua mãe e por suas irmãs.

Reunido com os amigos em um quartinho de despensa, nos fundos da casa, Flavinho brincou: foi policial, ladrão, médico, advogado, comandante de tropa estelar, piloto de fórmula um... e, adormeceu.

A família de Flavinho era um retrato dos anos 80, um retrato das mazelas dos Planos Bresser, Verão, Cruzado e tantos outros. O pai, Sr. Pedro, após anos de dedicação a uma empresa local, viu-se obrigado a trabalhar em outra cidade. A mãe, Dona Ana, após anos como dona-de-casa, viu o marido em busca de emprego e voltou a exercer sua antiga profissão, o magistério. Júlia a irmã adolescente magrela, Laura, a irmã do meio, aparelho nos dentes e um All Star no pé.

Quando o módulo estelar se aproximava de um inexplorado planeta, um cheiro de bolo de fubá invadiu o interior da espaçonave e despertou o menino daquele sonho bom. Flavinho comeu dois pedaços de bolo, só não comeu o terceiro porque sua mãe o abraçou e disse algumas palavras que o garoto não compreendeu.

Nesse momento, todos saíram de casa, quietos, em um longo passeio.

Percorrendo, tal qual Alice, um caminho pelo qual não importa para onde se vá, Flavinho só fazia imaginar: foi expedicionário, fazendeiro, um desbravador em busca de tesouros ainda não revelados.

“Esse menino é esperto, mas ele vive nas nuvens!”. A frase, recorrente na boca da professora primária de Flavinho era talvez sua melhor definição.

Um dia antes de toda essa festa, Flavinho acordou e tomou café com seu pai. Quando Sr. Pedro estava saindo para trabalhar, o garoto o abraçou e pediu para acompanhá-lo, o abraço foi retribuído, mas o pedido não. O garoto chorou.

Naquela noite choveu forte... Muito forte.

Durante a festa, durante o passeio, Flavinho não viu a tristeza, o silêncio e as lágrimas das pessoas ao seu redor. Flavinho não ouviu os comentários sobre seu futuro e sobre o futuro de sua família. Flavinho não foi capaz de perceber que naquela noite sua vida havia mudado.

O cortejo parou já no interior do cemitério, e quando Flavinho viu onde estava, sua imaginação também parou.

Em um lampejo o garoto viu tudo o que sua imaginação teimava em esconder. O garoto viu o corpo de seu pai inerte, sem vida. O garoto viu, mas não acreditou.

Em seu mundo quem estava ali naquele caixão não poderia ser seu pai. Seu pai saiu para trabalhar, mas ele iria voltar, ele sempre voltava. O medo e a tristeza encontraram Flavinho. A crueza da realidade havia derrotado a pureza da imaginação.

Nesse momento Flavinho viu uma árvore e subiu.

Ali, naquela pequena árvore, no meio de tantas vidas, tantas lembranças sepultadas, o garoto foi aos poucos voltando a viver, voltando a imaginar. Flavinho fechou os olhos e voou, voou como um Superman.

Durante anos, o garoto se negou a admitir a morte do pai. Em seu mundo, seu pai estava sempre presente, o acompanhando em todas as aventuras. Mas, o tempo passou, outras mortes vieram, e com elas Flavinho foi gradativamente aprendendo a conviver com esses sentimentos.

Flavinho cresceu, e seu mundo imaginário ficou pequeno. Hoje, ele ainda sonha, mas não vive mais em seu mundo de sonhos.

Hoje Flávio relembra com ternura o modo como a ingenuidade de sua infância o protegeu naquele momento em que uma forte chuva caiu e mudou o curso de sua vida.

5 comentários:

Anônimo disse...

Nossa, adorei esse conto...bastante triste, é verdade, mas muito realista...Ficou maravilhoso!!!

Anônimo disse...

O leitor, pela lente de Flavinho, surpreende-se protegidamente, como observado ao final. Sobre a árvore, outro mundo, outra forma de despedida.

Fábio Félix disse...

Maravilhoso. Muito bem contado, e energia tão real que seria suficiente para uma Super-Nova.
Energia demais até, eu colocaria, para um conto técnico.
Talvez, muito do próprio autor na fórmula.

Anônimo disse...

Emocionante... parabéns.

Anônimo disse...

O modo delicado e emocionante que o autor utiliza para traduzir a morte aos olhos de uma criança reproduz perfeitamente as sensações daqueles que já passaram por este sofrimento. Parabéns emicionados e orgulhosos!